sábado, 9 de junho de 2012

sábado, 19 de maio de 2012

Obscuris Medievus I


 Por: Leandro Zerbinatti de Oliveira

Ali estava ela, Mahlya Drecetis, sobre a colina de grama rasteira onde localizava-se a propriedade de sua família. Mas poucos dos seus ali estavam. Apenas um dos vassalos que trabalhava nos campos e uma de suas cunhadas, além, claro, do inseparável cão, Vörwen, grande como um lobo e com seu pelo espesso e avermelhado, estavam próximos quando chegou a hora da prole adentrar o mundo.
            Sobre aquela mesma grama, onde incontáveis vassalos foram humilhados e massacrados; onde plebeus morreram de frio, fome e exaustão; o lugar pelo qual seguiram os cavaleiros rumando à guerra. Ali ela dava a luz. Sem tempo ou possibilidade de chamar o médico do feudo, a irmã do senhor seu marido puxava a criança para fora, enquanto o camponês mantinha as pernas dela abertas – e certamente ele seria punido posteriormente por tal ousadia.
            Naquele momento tudo era dor, gritos e sangue. Sangue era também a cor do cachorro. O cachorro que a penetrava nos momentos de ausência em que o desejo predominava. O cão que comia melhor do que todas as famílias que trabalhavam naquelas terras.
            O herdeiro havia saído completamente. O cordão umbilical fora cortado de modo grosseiro, por uma lâmina que a outra mulher carregava consigo.
            Voltando suas atenções ao útero ensanguentado de lady Mahlya, o plebeu e a outra nobre deixaram o bebê próximo, sobre a grama. Foi então que aconteceu: abocanhando de uma vez o infante, o cão Vörwen disparou pelos campos; seu banquete inalcançável a quem fosse, enquanto a mãe empalidecia e deixava o mundo.
            Cães. Há quem diga que essa ou aquela raça seja assassina, violenta, malévola. Equivocam-se pois ao proferir tais dizeres tolos. Também se equivocam ao dizer que o homem nasce puro, ou que não pode mudar a forma como nasceu – os nobres destinados a governar e os menos afortunados acorrentados à submissão eterna.
            Não. O homem nasce podre ou bom. Esse sim. Tal qual ocorreu com lady Mahlya Drecetis. Desde criança (aquela fase que se crê possuírem inocência imaculada), ela já manifestava sua arrogância. E creiam, essa é a verdade. A criança que um dia será o homem podre, nada tem de inocente. Pode ter sim um quê de ignorância, mas se o mal ali estiver ele irá com certeza se manifestar, seja em um pensamento, em um secreto sadismo, ou em atitudes mimadas e dissimuladas.
            Mas jamais o cão. O cão nasce puro. Ele não tem perversão, mas é o homem (podre ou bom) que o ensina no decorrer do seu convívio.
            Justa causa à lady Mahlya. Que por toda a vida ensinou seu cão, Vörwen a ceder aos desejos da carne; usar quem quer que fosse para saciá-los; a pisar nos indefesos em troca de seu sustento. Agora jaz ela nos nove infernos, vitimando a si própria pela sua luxúria e também a sua prole, que jaz agora no estômago do cão.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Risadas na Torre


Por Leandro Zerbinatti de Oliveira

Lá estava eu, em uma paisagem agradável, antiga e de certa forma obscura. Era uma colina recoberta por uma grama rala.

Quase na extremidade leste havia uma torre quadrada, feita de blocos de granito. A construção era velha, provavelmente da época do medievo, com musgo crescendo por suas paredes. Quatro eram seus andares.

Por curiosidade (ou qualquer que seja o nome da força que me impulsionou) eu entrei. Cada piso consistia em um único cômodo quadrado, com uma escada de pedra que acompanhava o formato da parede e levava a andar superior. Somente o piso do térreo era de pedra bruta, os demais eram de assoalho, servindo tanto de chão para um andar quanto de teto para o outro.

A fraca iluminação era provida por velas apoiadas sobre as superfícies, candelabros ou lustres rústicos de madeira.

Repentinamente eu me vi no segundo andar. Era um pequeno atelier onde um pintor da renascença retratava uma paisagem bucólica. Com um chapéu de uma aba dobrada, adornado com uma pena vermelha, sobre sua cabeleira negra, longa e cacheada, e com seu bigode encerado, o jovem sequer prestou atenção em mim.

Logo depois fui para o exterior da torre, a fim de me encontrar com meu caro irmão para aguardarmos o compromisso noturno.

Em um piscar de olhos já havia escurecido e nos encontrávamos lá, sem saber como, sentados à mesa, no cômodo localizado em um dos últimos andares. Sobre a superfície de madeira antiga estavam dispostas várias bandejas e tigelas contendo carnes e sopas.

Todos os assentos estavam ocupados, mas a maioria eram borrões, faces indistinguíveis à minha memória. Mas eu reconheci nitidamente meu caro irmão, o pintor e o velho. Sim, havia um velho de expressão severa, olhos fundos e rosto magro, que usava um pequeno capuz de couro sobre o topo dos seus cabelos ralos e grisalhos.

Foi então que aconteceu, sabe-se lá por que, meu irmão e eu fomos tomados por um humor súbito e desatamos a gargalhar incontrolavelmente...como dois sádicos diante de um genocídio. Alguém nos alertou; o velho não ia gostar daquilo, e de fato. Ele, que molhava um pedaço de pão recém partido na sopa, levantou a cabeça para nos dirigir um olhar carrancudo. Sem dizer nada apenas olhou, e nós rimos e rimos...

Até hoje eu não sei que lugar era aquele, ou quem eram aquelas pessoas.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Mistérios da Escuridão

Mistérios da Escuridão

Por: Leandro Zerbinatti de Oliveira

O espaço; negro, frio, opressivo e sem vida era o que eu via dali. Aquele lugar onde eu me encontrava não passava de um solo cinza e árido, marcado por incontáveis crateras dos mais diversos tamanhos e pedaços de rochas soltas.

Um lugar inabitável e inalcançável. A lua; acredito eu ser o mais provável, mas não posso afirmar com certeza. Talvez uma lua diferente da que nós conhecemos. Talvez a mesma, ou quem sabe um meteoro ou pedaço de rocha na obscura imensidão. Mas não que isso importe, o fato é que o lugar deveria estar completamente inabitado...

Porém, intrigantemente não estava, e quão perturbadora era a natureza dos seus ocupantes:

O primeiro era um ser humanóide de aspecto monstruoso; seu rosto era um crânio recoberto por vestígios de uma pele seca e esverdeada, já quase completamente decomposta. Uma longa e selvagem cabeleira avermelhada recobria sua cabeça demoníaca, dotada de um par de chifres curvos. Faltavam-lhe os olhos, mas uma luz que brilhava sadicamente compensava a ausência destes. Sua mandíbula encontrava-se cerrada – uma raiva inumana, ou um sorriso sádico? –, apresentando caninos longos e afiados. O corpo da criatura, apesar dos danos expondo ossos em certas partes, era grande e musculoso, e em sua mão esquerda ele segurava uma corrente.

A outra figura era uma mulher. Ela possuía feições jovens e atraentes – até um pouco selvagens; seus cabelos castanhos longos e cacheados esvoaçavam como que se soprados pelo vento. Completamente nua, a jovem encontrava-se de joelhos, com as mãos apoiadas sobre o chão, olhando para cima, com uma expressão de prazer (ou seria submissão?). E ao redor do seu pescoço lá estava, a corrente, prendendo-a como uma coleira.

O que era tudo aquilo? Pensei eu diante da cena. Como aqueles dois seres, um dos quais desafiando a própria lógica, haviam chegado naquele lugar? Por que ali? Quem ou o que eram eles? E o que faziam?

Teria aquilo tudo sido um sonho, ou de alguma forma eu estive lá, testemunhando aquela bizarra (e ainda fascinante) cena? Ou seria eu um deles...?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

052

A sirene toca pontualmente às seis.

Eu abro os olhos e lamento a luz da manhã. Hora de acordar.

Saio da cama lentamente, ando até meu pequeno banheiro e tomo algo que agora chamamos de banho. A água é racionada e todos temos uma cota diária de água potável. Embora nos último dias não tenhamos tido problemas com ataques, a água tende a falhar uma ou duas vezes por semana. Cerca de cinco minutos tem de ser o suficiente, caso contrário, não conseguirei me lavar à noite.

Mas esse é o tipo de situação com que a gente se acostuma.

O café da manhã não existe mais. Frutas, pães e leite foram resumidos a uma ração em pó ou para os mais afortunados, barras de ração com algum sabor diferente.

Preciso trocar de roupa. Calça, camisa, colete de proteção. Ligo a TV, o noticiário tem as mesmas manchetes de ontem, nenhum ataque notável, nada muito importante. A fábrica ainda estará lá quando eu chegar.

Não faço nada além de dobrar a cama para dentro do armário, bagunçada como sempre.

Pego minha mochila, tranco a porta na primeira, segunda, terceira trava, passo o cartão, tranca novamente.

Conheço os vizinhos, mas nunca se sabe, os tempos são difíceis.

Hora de descer. Encontro meu colegas de trabalho já no hall do andar. Agora, cada fábrica tem seu edifício protegido, cercado, murado vinte e quatro horas por dia. A segurança é imprescindível, essa região ainda não foi totalmente limpa e isolada.

Conversa de elevador. “O dia está limpo, não?!” Sim, o dia está limpo há mais de trinta anos, seco, empoeirado. Lindamente igual.

As ações do Convex subiram, disseram que houve um golpe, vazamento de informações.” Essa eu não sabia. O Convex domina o mundo hoje. Nossos sistemas de segurança são fabricados por eles, e eles estão por toda à parte. Dizem que a “praga” surgiu durantes testes com armas químicas em seus laboratórios, e agora eles faturam pela contenção do monstro que criaram.

A entrada do prédio ainda é antiga, mas melhorias foram feitas nos últimos anos.

São três enormes portões que levam a um pequeno pátio, que já foi nossa antiga área de lazer. Os dois últimos portões são eletrificados e guardados por enormes canhões de prótons, assim como o resto do muro. Nada muito impressionável, comparado às humildes residências dos mais importantes.

Mas trabalhadores são sagrados e suas vidas asseguram as dos demais.

Adentrando o pátio vejo o ônibus que nos levará até o trem. Aí sim é que pode-se ter uma idéia do caos que vivemos hoje. A enorme máquina de guerra é um confortável transporte de seres humanos, blindado, fechado e armado. Não precisamos de janelas, precisamos de guardas armados tais como eram os videogames do século XXI. E achávamos legal.

Cerca de mil pessoas moram no mesmo condomínio que eu. Todos trabalham na mesma fábrica de ração humana e animal. Imagine como gosto dessa ração.

São seis turnos de trabalho e ônibus que levam e trazem essa gente o dia todo.

Não costumo prestar atenção às conversas no trajeto, mas hoje é um dia particularmente especial. A tal alta das ações do Convex é o assunto e cada um tem a própria teoria da conspiração. Ouço ao fundo alguém dizendo que a informação de uma nova arma será lançada e que isso beneficiaria um determinado acionista, magnata das comunicações.

Fico pensando em que isso poderia me interessar. A vida continuará a mesma e eu vou continua comendo ração.

O caminho não é tão longo, talvez quarenta minutos, e pelo que podemos perceber fechados nesta caixa é que a velocidade é bem baixa. Apenas um monitor mostra o caminho.

Árido, vazio, irreconhecível. Escombros do que um dia foram nossas casas.

Percebo os guardas tensos, vestidos em suas armaduras high-tech e com suas armas em punho.

A câmera do monitor muda para a parte traseira do ônibus, e alguns se assustam ao ver as criaturas nos seguindo. Humanóides com cerca de dois metros e meio de altura, seguindo em motos improvisadas se preparam para abrir fogo. Seguem o transporte pela rua, única parte sem entulhos e um ou outro ainda surge da ruína das casas ao redor. O ônibus acelera.

Podemos ver tiros indo em sua direção e derrubando um a um.

A ameaça é derrotada, e pela escotilha traseira um dos guardas faz sinal de que está tudo limpo. Mas eles continuam tensos.

Ninguém diz nada. Como se o som pudesse atrair atenção indesejada novamente.

Algo como vinte minutos passam e mais nenhum incidente ocorre.

O ônibus segue pela plataforma elevada por cima de uma enorme muralha, passa por um túnel metálico eletrificado e desce próximo ao trem. Consigo ver três dos guardas descerem na frente e acenarem para o posto de vigia na saída do túnel.

Assim que somos liberados, eu desço do ônibus e vejo o guarda que estava no fundo, conversando com alguém que aparentemente tem uma patente superior. Os rostos preocupados demonstram que o ataque foi algo incomum, o que concordo, nunca aconteceu no meu turno.

Sigo para o trem.

Nada além de uma enorme minhoca de aço blindado, sem janelas nas laterais, apenas alguns vãos para o cano das armas.

De todo o seu comprimento, saem antenas que prendem fios de alta tensão, mas não como os de antigamente. As armas de prótons tão populares agora são a versão mais recente que a tecnologia permitiu.

Aqueles pequenos cabos transportam energia suficiente para matar a todos dentro do trem se algo der errado, e o perigo que combatem vale o risco.

Também por toda a extensão do trem existem lâminas retráteis, feitas de uma liga de metal praticamente indestrutível, mais uma obra prima da nossa querida Convex. Dizem que os nossos coletes de proteção também são recheados dele, por ser leve até acredito que isso possa ter alguma verdade. Mas o investimento....

O policial da estação indica a entrada do vagão, onde cada pessoa já tinha um local pré-estabelecido, fato que eu nunca consegui entender, mas continuo andando. Subo a pequena escada de metal, viro à esquerda no corredor, e paro em frente à minha cadeira.

A placa onde existia meu nome tem agora no nome de outra pessoa. Estranho. Olho para o homem de uniforme mais próximo, aponto para uma poltrona mais a frente que estava vazia, ele nada diz.

Ando novamente até ali, sento e finalmente consigo relaxar. As pessoas vão se acomodando lentamente, ainda posso perceber uma certa ansiosidade no ar. A preocupação diária é ainda maior hoje.

A linha onde o trem circula é uma antiga linha de metrô. Ela cruza uma parte da cidade que ruiu e não foi possível remover as toneladas de destroços para abrir as passagens. Ao invés disso, o governo achou que seria mais seguro reabrir os túneis e não ter de enfrentar as aberrações lá em cima. Um dos maiores erros cometidos desde o nosso “fim do mundo”.

Assim que os primeiros trabalhadores começaram a entrar descobriram que o problema da superfície não era nada comparado ao habitantes dos subterrâneos.

A mutação que afetava as todas as vítimas do holocausto agiu diferente em cada espécie e aqui embaixo, os monstros tornaram-se gigantescos e implacáveis.

Centenas de trabalhadores foram engolidos pela escuridão até que um plano de contingência fosse capaz de isolar o túnel com segurança suficiente para que fosse possível desobstruir as passagens.

Nós não tínhamos trabalho naquela época e a alimentação era muito escassa. Tínhamos que aceitar que o trem seria a salvação e que o risco de morte era melhor do que morrer de fome aos poucos.

Com o tempo mais e mais linhas foram reabertas e os acidentes nas viagens tornaram-se mais raros.

E aqui estou eu agora. Tirado dos devaneios pelo barulho das incontáveis travas, portas e sistemas de segurança. Comparado com o metro de antigamente, este é um trem de luxo. Poltronas confortáveis e espaçosas, monitores com a única rede de notícias que temos e o assunto continua sendo o Convex.

Cansei”

Viro para o lado e durmo. Cerca de uma hora de viagem, sem saber se chegarei ou não. “Deve ser mais ou menos, umas sete da manhã”, ouço alguém do meu lado. “Pelo menos o atraso não é nossa culpa.”- Alguém responde. Um leve som de riso se espalha pelo vagão, momentos antes do freio de emergência ser acionado e dos gritos dos soldados virem dos últimos vagões.

Sons abafados de tiros partem de dentro para fora e um urro colossal vem seguido do chacoalhar do trem e de outro urro.

Pelos monitores das câmeras de fora é possível ver a sombra de algo parecido com uma minhoca gigante, e a visão noturna dá a impressão de tentáculos saindo da boca.

Um alarme soa e o trem começa a acelerar novamente. Dessa vez a velocidade é bem maior do que a normal, e mais uma vez olhando pelo monitor, vejo o pulso de energia em volta do metal das antenas, seguindo em ondas pelos cabos até o final.

As pessoas no vagão de trás correm até a frente, sentam-se nas poltronas livres. Vejo nitidamente o pânico em seus rostos. Cena inimaginável, por mais que pudesse ser comum.

Os tiros continuam, um dos soldados é arrastado para fora junto com um pedaço da escotilha traseira do vagão. Seus gritos param no momento em que um pulso de energia atinge a criatura.

O trem consegue finalmente se desvencilhar do monstro. Um recado soa nos alto falantes: “Seguiremos a viagem em velocidade máxima, por favor, mantenham-se sentados em suas poltronas”. Ao mesmo tempo em que um soldado passa um recado pelo seu comunicador em tom baixo, e a única coisa que eu posso ouvir é “Ataque evadido. Mobilizar tropas de limpeza”.

Não consigo sequer fechar os olhos. A imagem no monitor ainda mostra a traseira, o túnel e o buraco no metal blindado por onde o soldado foi arrancado. Ninguém fala mais nada.

Das pouco mais de 50 pessoas no trem somente metade nunca passou por isso.

Eu estou entre elas. Ninguém se acostuma.

O ocorrido de hoje não causou baixas civis”, diz o homem do comunicador antes de ir até a cabine.

Minutos depois a câmera do monitor aponta para frente. Luz. Chegamos.

O auto falante novamente é acionado. “Senhores passageiros, caso haja alguém ferido, por favor, contate nossos agentes na plataforma de desembarque. Pedimos desculpas pelo ocorrido e tenham um bom dia.”

Desço. Chego no trabalho feliz como nunca tinha estado antes. Estava vivo. Mas tinha medo. Medo de fazer o caminho de volta. Dois ataques no mesmo dia, dentro de duas horas, não era comum. Começo a sentir o pavor que já tinha visto no rosto de outros...

Me resta trabalhar. Produzir a nojenta ração para humanos por seis horas seguidas antes de entrar novamente no comboio da volta. Não quero conversar, não quero voltar. Eu tenho que voltar...

Minuto após minuto o dia passa. Pacote após pacote de ração. É isso o que eu faço. Olho as máquinas que empacotam a porcaria que nós comemos. Mais alguns minutos.

O alarme soa. Hora de sair. Vou para o armário, valido o cartão que libera a água para o meu apartamento e a comida. Hora de voltar para o trem.

Minhas mãos tremem levemente, sinto o suor descendo pelo rosto. Vejo que todos estão tão tensos como eu, ninguém tenta conversar, ninguém mais lembra das notícias. Todos tem medo.

O trem está lá, sem nenhum arranhão, mas não é o mesmo trem. “O pessoal da contingência limpou o caminho, disseram que a briga foi feia. Perderam mais dois homens lá dentro hoje.” – Disse um dos trabalhadores mais antigos. “É, foi o que aconteceu ontem. E ainda vem dizer que estamos ha uma semana sem ataques... Palhaços, é isso que somos!”

Começo a andar e sigo até a escada, entro e viro à esquerda. Olho para o guarda... “posso?” digo apontando para o banco. Ele nada responde.

Sento na poltrona, tento relaxar. “Não quero morrer tão jovem.” – “Pensamento imbecil”, digo para mim mesmo.

As pessoas vão entrando, sentando, ainda ninguém conversa. Os soldados na plataforma entram e dão o sinal para a partida. Travas, travas de novo e de novo. As portas e o sistema de segurança fazem exatamente como sempre fizeram e o trem se prepara para partir.

O túnel da volta é o mesmo. O mesmo caminho nos leva por entre o concreto e o aço reforçado. Sem muitas bifurcações por segurança, os trilhos foram fixados ao chão e as rodas dos trens são encaixadas nos trilhos, evitando que o trem seja sacudido demais.

Não sei onde fica a reserva de energia que sustenta todo o sistema, mas acredito que seja externa. A parada de um trem dentro do túnel seria morte certa para todos os seus ocupantes e sem dúvida para o próximo trem que viria na mesma linha, algo com um custo incalculável, sem pensar no pânico que geraria na população.

Eu tento dormir, mas a apreensão é geral. Olho no relógio que está parado desde ontem e eu não sei como não percebi. Deve estar no fim.

Mais alguns minutos e novamente a luz. O fim do dia, céu claro, dando os primeiros sinais do pôr do sol.

Acabou. Chegamos. As portas se abrem, desço.

No horizonte, já levemente alaranjado, o sol começava a tocar a terra. “Um momento mágico” – Pensei. Ainda estou vivo.

Meu coração bate mais tranqüilo. Agora só falta o ônibus e os incidentes realmente são mais raros. Ando apressado, o transporte já estava lá. O céu mais escuro a cada minuto e os outros demoram a entrar. Vou ficando menos tranqüilo. De fato, minha tranqüilidade some em questão de minutos.

Outro ônibus traz os trabalhadores dos últimos turnos, somos obrigados a esperar que ele entre, manobre e só então as portas são trancadas e o transporte segue em direção à rampa e à passagem para a rua.

Desespero. É a única coisa que passa pela minha cabeça. O monitor da câmera externa mostra agora com infravermelho que não existe nenhum movimento lá fora. O ônibus se arrasta e cada minuto parece dois. “Pare, seu imbecil, você fez isso nos últimos vinte anos da sua vida, por que está nervoso agora? Achou que daria sorte para sempre?” – Mas o pânico parece cada vez mais forte.

Já está totalmente escuro e o transporte para. Ouço o abrir dos portões do condomínio e vejo os holofotes lá fora, certificando-se de que estávamos sozinhos.

Não me lembro de ter visto as portas do ônibus abrindo e nem sequer de chegar ao elevador. Vejo agora o meu apartamento. Minha cama está aberta e a televisão está ligada. Minhas coisas não estão lá. “Mas eu tranquei a porta...”

Sento na cama e começo a finalmente prestar atenção no noticiário, algo que eu não fiz por dias. A repórter demonstra horror ao listar uma enorme quantidade de vítimas de um ataque no túnel da linha 8.

Era a minha linha. “Mas eu estive lá ontem e não aconteceu nada...”. Os nomes começam a subir lentamente na tela seguidos de fotos. Um conhecido... dois conhecidos... O desespero está instalado. Mais alguns conhecidos...

Flashes invadem a minha cabeça. Imagens do trem sendo sacudido, vozes, gritos e garras. Tiros. Não consigo ver o que se aproximou, mas eram vários.

Soldados correm e caem, eu me levando da poltrona, mas algo me alcança.

Vejo sangue, metal retorcido, pessoas jogadas por todos os lados.

Eu caio no chão, sentindo dor e frio. Não sei por quanto tempo fiquei ali. Finalmente, não sinto mais nada.

As imagens somem, consigo focalizar novamente a televisão. A lista de vítimas. Lá está o meu nome. A minha foto...

O Profeta do Caos

Por Leandro Zerbinatti de Oliveira

A floresta Klyvat pouco havia sido domada pelo homem. Com árvores antigas, cujos galhos se entrelaçavam nas alturas (como que mãos esqueléticas desejando impedir que o Sol tocasse qual tesouro obscuro ocultassem em seu coração) e com uma tapeçaria de folhas secas cobrindo seu solo, poucas eram as trilhas que cortavam aquela mata ancestral, e raros eram os que a escolhiam como rota de comércio ou viajem.

Um local inusitado para um encontro como aquele; um encontro que ocorrera, pode-se dizer, por puro acaso.

De um lado estava Faluug Haags, bardo e compilador de histórias, um jovem homem de feições comuns e rosto fino, com um pequeno bigode encerado, barba rala e com uma lisa cabeleira castanha escura que mantinha repartida ao meio e se alongava até o final da orelha; do outro, um homem um pouco mais velho, com um rosto pálido, liso e bem afeiçoado, que dava a impressão de sempre manter um sorriso misterioso nos lábios. Seus olhos eram de um castanho escuro (e por vezes pareciam ser completamente negros) e possuíam uma profundidade ímpar, como se enxergassem muito além, na própria alma daquilo que fitavam. Os cabelos eram negros e lustrosos, penteados para trás e presos em uma trança.

E agora ambos se saudavam.

- Oh, uma alma por aqui! Enfim, minha escolha descortina seus bons frutos. Faluug Haags ao vosso dispor; bardo e apreciador de conhecimentos. E qual seria vossa graça, meu senhor?

- As visões de um profeta importam muito mais do que o seu nome. – a voz do homem era grave e profunda, e exercia um efeito hipnótico naqueles que a ouviam.

- Um profeta! – exclamou o bardo em uma excitação, que logo deu lugar à cordialidade. – Oh, bom, isso explica por que escolheste este caminho, meu senhor; a plebe supersticiosa, comerciantes cautelosos ou nobres que querem viver o bastante para usufruir das posses jamais o fariam de bom grado. A urgência e a sabedoria devem guiar teus passos, por isso não mais tomarei teu tempo. – disse o bardo por fim, e pôs-se a caminhar com certo ar de desapontamento.

- Mas e você, Faluug Haags, por que razão passa por Klyvat? Quando me avistou abençoou sua escolha, e agora simplesmente intenciona partir. Se há algo que buscas, não te preocupes meu amigo. Diga, e eu farei o possível para auxiliar-te.

De súbito os olhos do bardo se alegraram.

- Se não for um incômodo, meu senhor profeta. Na verdade, escolhi esse caminho por um mero capricho de minha intuição, como se algo me dissesse que aqui eu vislumbraria eventos dignos de nota, ou encontrasse alguém interessante; o que fatidicamente aconteceu. E a verdade é que além do meu amor pela música e do meu dom narrativo, eu também sou dotado de grande por histórias alheias. Em outras palavras, nobre profeta, eu sou um colecionador de histórias.

Ao ouvir aquelas palavras os lábios do profeta desenharam um sorriso, e alguém versado nas sutilezas dos desígnios obscuros teria percebido um quê de malícia.

- Prossiga. – ordenou o misterioso profeta.

- Dar-me-ia a honra de narrar a história de vossa vida e, se possível, algumas das tuas magnânimas precisões e seus desfechos? – pediu Faluug.

- Mas é claro! – anuiu o outro homem. – Venha, vamos procurar um local mais confortável aqui na mata. – E seguiu a frente do bardo.

Um pouco mais para dentro da mata avistaram algumas árvores tombadas, não muito grandes. Ali, o profeta ajeitou sua capa negra (como o resto de suas vestes) e sentou-se sobre um dos troncos sem vida, fazendo gesto para que o bardo se sentasse no outro tronco, logo à frente.

Após pegar a pena e um grande livro costurado em couro, Faluug Haags olhou atentamente para o homem de negro.

- Então começarei. – declarou o profeta, encarando o bardo por alguns segundos, e então fitando a floresta, como se vislumbrando o desenrolar de alguma cena longínqua.

- Sobre a minha vida o que poso dizer? A profecia rege a minha existência, portanto a profecia é a minha vida...

- Mas...espere, o senhor nasceu em algum lugar, teve pais, ou alguém – talvez os pais do homem estejam mortos, ou jamais os conhecera, e não foi cortês evocar os nomes deles em presunções. – Peço perdão, mas como foi antes de ser um profeta? Deve ter havido algo digno de menção fora vosso magnífico dom.

- Não. Não houve. – declarou ele enfaticamente, com um tom sombrio na voz. – Mas se algo desse tipo lhe é tão interessante, eu lhe darei algo da minha juventude: meu nome. Podeis me chamar de Maelleus.

- Shhhh. – fez o profeta, ao reparar que o bardo o interromperia novamente. – Eu vou lhe contar algo a respeito das minhas profecias que fará com que você perca completamente o interesse no passado distante: é tudo mentira.

- Perdão senhor, o que queres dizer? – Faluug estava atônito.

- São falsas, as profecias. Eu as invento. Eu não sou um profeta...ou melhor, eu sou, mas não da forma como imaginas. Pois é contando as minhas mentiras sobre “o que irá acontecer e como irá acontecer” é que eu faço com que as pessoas causem tudo isso. Através da mentira, eu crio a verdade; através da fantasia, eu faço a realidade. – e terminou com um sorriso zombeteiro.

O bardo ouvia com os olhos arregalados e quase sem reação, forçando sua mão direita a esboçar um desanimado resumo daquilo tudo em seu livro.

- Mas não desanime Faluug Haags, eu vou narrar alguns desses episódios, e tenho certeza que servirão muito bem aos seus propósitos históricos. Comecemos pelo caso de Barmott; esta era uma vila rural, do tipo em que o único movimento é aquele das hélices do moinho e dos camponeses levando a colheita para o mercado. Ou seja, um lugar tedioso, governado por um descendente dos fundadores, Lorde Olvar Barmott. Em um agradável e cinzento dia chuvoso estava eu a passar pelo local, e por lá parei. Não demorou até que eu conhecesse todos os habitantes locais e, no transcorrer de algumas horas, o “ilustre profeta” fora convidado a ter para com os mais abastados de lá; todos desejando ouvir alguma previsão. Obviamente, dentre estes estava o próprio Lorde Olvar, que requisitou para si o direito, como autoridade local, de ser o primeiro a ouvir o que diziam as profecias sobre o futuro das suas terras.

- Profecias da vossa invenção... – observou o ouvinte.

- Sim, depois de uma eficaz observação do local e suas figuras relevantes. A audiência com Olvar teve lugar em um salão de jantar, no seu solar; éramos só nós dois e as velas, seus familiares, tal qual seus criados, foram dispensados mediante minha própria solicitação, “do contrário a profecia não funcionará, pois ela deve ser ouvida apenas pelos ouvidos para os quais foi feita”, foi o que eu lhe disse. – e sorriu com escárnio.

- Eu disse a ele então que as visões me mostravam uma bela vila, próspera, cuja grandeza seria cantada além de todas as fronteiras de todas as terras, e cada homem e mulher dentro de cada muralha invejaria aquele local, mas que aquele futuro corria perigo, pois ele só seria possível com Olvar no governo de Barmott, e ele próprio corria sério perigo, uma vez que sua esposa tinha um caso com outro nobre, e que ambos pretendiam envenená-lo para que o governo do local passasse para suas mãos. Hah, ele então se desesperou, quase saiu correndo de imediato para estrangular a mulher, mas eu expliquei que a profecia não era clara acerca da identidade do amante, e que ele deveria sutilmente fingir que não tinha conhecimento de nada, até que conseguisse descobrir quem o outro homem era. Eu parti no dia seguinte, mas não obstante as conseqüências daquilo tudo chegaram aos meus ouvidos. Lord Olvar não agüentou a situação e passou a espancar sua mulher diariamente para que ela revelasse a identidade do suposto amante, o idiota também se tornou paranóico, recusando-se a comer ou beber quase tudo que lhe dessem. Pouco a pouco essa semente floresceu, até que no fim das contas, em certo fim de tarde, Lord Olvar estava tão enfurecido com sua “vadia dissimulada” que passou a espancá-la com seu cajado de regência. A mulher, que até então suportara tudo no silêncio velado do lar, saiu pelas ruas gritando para que todos fossem testemunhas da barbárie, mas aquilo só deixou o homem mais possesso ainda.

Depois de uma risada sinistra e debochada, que escapo com naturalidade dos seus lábios, Maelleus prosseguiu em tom vagaroso e sombrio.

- Ele a alcançou pelas ruas da vila e ali mesmo a espancou até que a sua cabeça se partisse como uma fruta de casca dura, fazendo seu cérebro saltar como se fosse um caroço imprestável. A plebe que tudo assistiu acabou tomada pela fúria; ignoraram o status do homem e o arrastaram dali mesmo até a forca. Ambos Bormott morreram sem deixar herdeiros ou parentes próximos, e assim o senhor ao qual Bormott era vassalo enviou um novo regente para o local, um homem incapaz, um estúpido glutão mais preocupado com a organização da sua ceia do que com seu povo, e hoje a vila de Bormott nada mais é do que uma pocilga enlameada fadada a ocasionalmente desaparecer dos mapas.

Faluug terminou de escrever assim que a voz do profeta cessou, ele dirigiu ao homem de negro um olhar estarrecido e após alguns momentos se recompôs.

- Eu não nego que esse tal Lord Olvar tenha merecido a desgraça que se lhe abateu, o homem era um bruto; jamais se ergue a mão contra uma dama, ainda mais sem a certeza da verdade; mas mesmo assim meu bom senhor, qual o propósito que o conduz a tudo isso? Seria levar os corrompidos a causar a própria punição?

- Ah meu caro bardo, entendeste o cerne da questão, mas não o propósito. Eu faço isso, pois é divertido. Mas a minha diversão só é possível pelo ser humano ser estúpido. Preveja-lhe uma catástrofe, e no seu desespero para impedir aquilo ele fará de tudo...fará tanto, que acabará ele mesmo por causar o que visa impedir, quando se ficasse quieto e vivesse a sua vida da melhor forma possível, evitaria a tragédia; então não, eu não puno homens corruptos, eu apenas me divirto com qualquer tipo de indivíduo que se deixe levar pelas minhas previsões; e se deixarmos essa enfadonha discussão moral de lado, vou narrar-te mais alguns casos.

Com a velada anuência do bardo, o profeta sombrio passou a narrar outro caso.

- Estava eu a passar pelo rio Temtus, nas terras do centro, quando me deparei com uma pequena comunidade; lenhadores, artesãos e religiosos formavam a sociedade local, estes últimos responsáveis pelas leis e pelo governo local; uma teocracia rural hipócrita e sanguinária. Você sabe como é, bom Faluug, um bando de iletrados guiados pelas palavras de seu deus, encorajados a trabalhar como que com um cabresto durante o dia e a tramar contra os seus semelhantes durante a noite, em suas cabanas de madeira e palha, procurando (e na maioria das vezes inventando) sinais de bruxaria e corrupção nos próprios vizinhos; os homens, mulheres e crianças que conheciam durante toda a vida. Lá eles reverenciavam uma divindade de nome Leuuö, o senhor da pureza, e em nome dele cometiam todos esses abusos...

- Só um momento, caro Maelleus, como se escreve o nome do deus deles? Em todas as minhas viagens nunca ouvi falar de tal crença.

Depois de soletrar o nome da divindade, o profeta deu seguimento ao relato:

- Nunca ouviste falar, pois foram os próprios sacerdotes locais que criaram o culto e a divindade. E submeteram toda a comunidade às leis de Leuuö (também convenientemente elaboradas por eles). O que eles não sabiam, entretanto, sobre suas próprias terras, é que o lugar foi visto no passado como lar de bruxas e criaturas malignas dos ermos, isso tudo muito antes da chegada dos homens remanescentes da Expurgação de Mlhor. E claro, eu fiz questão de instruí-los sobre isso, incutindo mais superstições e temores em seus corações. Em seguida (o que me tomou muito tempo) tive de me fazer passar como um profeta escolhido por Leuuö, o que foge do meu feitio de atuação, mas eu não tive outra escolha...eles não acreditariam nas minhas palavras se de outro modo fosse. Depois de passar algumas semanas por lá, e de convencê-los de que o deus enviava suas mensagens através das minhas previsões, chegara a hora de realizar meu intento. Com palavras alarmantes eu os preveni de que uma das antigas bruxas do passado pretendia punir os invasores e semear a corrupção entre eles, levando-os ao sofrimento e a perdição de suas almas. Para isso ela possuiria o corpo de uma jovem extremamente bela, que houvesse praticado inúmeros atos de devassidão; isso assustou a todos, claro, em especial os sacerdotes, uma vez lá havia uma jovem, de extrema beleza chamada Cerissa; ela havia sido violada pela grande maioria dos sacerdotes, pois não conseguiam resistir aos seus dotes carnais, mas calava-se por medo, e também porque sabia que de nada adiantaria contar o que lhe era feito, uma vez que todos sabiam que os “bons” servos de Leuuö semanalmente a submetiam a sessões de exorcismo para livrá-la de um mal que a acompanhava desde a puberdade; haha, uma desculpa bem elaborada...

O narrador deu uma pausa, pôs-se em pé e acendeu um cachimbo fino de madeira negra que carregava no interior de seu manto. Depois de algumas tragadas, enquanto dava tempo para que o bardo organizasse suas anotações, continuou.

- Isso era tudo o que os débeis precisavam para acusar a jovem, de cujo destino infeliz eles eram parcialmente responsáveis. Lá eles puniam os hereges amarrando-os em um tronco e depois atravessando suas testas com um longo prego de aço vermelho, mas é claro que Cerissa não poderia ser submetida a tal execução fria, divertida e excitante, mas fria. Eu os instruí para que, quem quer que fosse o “receptáculo”da bruxa, devesse ser queimada viva, atada em cipó de hier.

- E eles escolheram realmente a jovem dama? Isso é uma injustiça! – exclamou o bardo.

- É claro que escolheram! Eles estavam assustados, e pela primeira vez acreditavam realmente na sua própria religião...além disso, a minha profecia uniu o útil ao agradável: eles calariam a única pessoa (além de minha pessoa, claro) a conhecer seus pecados e também impediriam a vinda de um grande mal. E assim foi. Eu deixei o local assim que a chama foi acesa, mas pude ver, de dentro da floresta, o clarão consumindo a vila; o cipó de hier derrete no calor, por isso eu fiz questão de incluí-lo no rito, pois assim a jovem em chamas poderia se soltar antes da morte, e espalhar sua vingança entre os mantos dos sacerdotes e as cabanas de madeira e palha. – e desatou-se a rir.

A expressão de Faluug era um misto de incredulidade e asco.

- Como podes fazer algo assim! De certo os sacerdotes hipócritas mereciam um castigo pelo que fizeram à jovem dama, e sabe-se lá quantos inocentes; mas incitá-los a matá-la de tal forma cruel! Ela não merecia morrer! Muito menos para os seus caprichos sádicos! Falso profeta!

- Falso? Jamais! O que eu digo pode ser mentira, mas os resultados que guardo para mim são plenamente verdadeiros! Eu sei o que está por vir! E é para garantir que essas coisas ocorram é que eu espalho as falsas profecias, pois sei que, comportando-se guiados pelo medo, os homens causarão os resultados que eu vislumbro! Eu prevejo o caos, e coloco aqueles que cruzam meu caminho na sua direção. Mas acalme-se bom Faluug, tenho mais uma, dentre muitas histórias para contar-te – e teria ainda mais, se não fosse aquele bastardo! Cético bastardo que ousou ignorar minhas palavras - pensou.

Desta vez o colecionador de histórias permaneceu carrancudo, quase quebrando a pena entre seus dedos, tamanha a força com que a segurava, aguardando pela próxima atrocidade do profeta obscuro.

- Essa ocorreu na cidade de Uncardien, na fronteira da costa leste, e prometo-lhe que a narrarei brevemente, colecionador de histórias, pois daqui devo partir diretamente para o reino de Masmin. Acontece que Uncardien era uma grande cidade portuária, a “rocha que encara o mar”, e isso por si só já o faz deduzir que ela vivia abarrotada de todo o tipo de pessoas que chegavam pelos portos, mas não era esse o único atrativo do local: um sistema de filtragem da água do mar que a tornava consumível, graças a um minério nativo da região espalhado por galerias sob as ruas atraia incontáveis visitantes, e proporcionava uma fertilidade única ao solo das redondezas.

Pausando a narrativa a fim de conceder tempo para as anotações do bardo, Maelleus reabasteceu o cachimbo e o acendeu novamente.

- Posso? Pois bem, em lugares com muitas pessoas, a proliferação das doenças é maior, e acontece que lá não era raro ocasionalmente um surto abrupto de alguma peste misteriosa ceifar algumas dezenas de vidas. Fortuitamente, na semana em que eu me instalei por lá, um desses surtos estourado, acometendo boa parte dos parentes de uma rica comerciante de águas, Candelya Lammusc. Depois de tentar a maioria dos médicos, ela enfim veio ao profeta, e as minhas instruções – observação, lógica, e um pouco de higiene pessoal – a levaram à cura do mal que flagelava seus entes queridos. Por gentileza e boa índole eu aproveitei a confiança da abastada dama e confiei a ela uma grava profecia acerca do futuro de Uncardien: o local fora vítima de uma maldição, por isso os surtos de doença eram comuns, e um pior viria, que não pouparia uma alma que ali se encontrasse. A maldição fora conjurada por uma entidade demoníaca, que se encontrava entre os habitantes do local, na forma de um inocente bebê, filho de agricultores locais.

O cenho de Faluug Haags tornava-se cada vez mais severo e incrédulo conforme ele supunha o fim daquela história.

- Com o testemunho de Candelya ao meu favor, não foi difícil convencer as autoridades locais, de que o ritual de purificação devia ser realizado. O bebê precisava ser sacrificado. Com um punhado de guardas, a milícia da cidade retirou o bebê dos braços de seus pais e seguiu a risca as minhas instruções, atirando o bebê vivo em um dos poços da cidade. Ah...demorou menos do que eu esperava, e aquele pequeno cadáver decomposto nas galeria subterrâneas logo espalhou sua podridão entre todos os que beberam dos poços da agora destituída de vida, Uncardien.

- Monstro maldito! Cria do demônio! – a pena se partiu entre os dedos de Faluug. – Profeta? És um assassino! Isso é o que és! – mas por maior que fosse a sua fúria o colecionador de história não ousava atacar o homem, pois se o profeta tivesse algum conhecimento de combate lhe tiraria a vida facilmente.

- Monsrtro? Não. Demônio? De modo algum! Faço o que faço pois me divirto, confesso, mas que culpa eu tenho se o ser humano é ávido para acreditar em minhas palavras e acima de tudo se achar no direito de tentar mudar o seu destino, seja ele real, seja ele pura invenção de minha parte? Eu já vos disse, se os homens se conformassem e vivessem suas vidas da melhor forma possível, nada disso aconteceria! Se a tragédia lhes recai, nada mais é senão por sua vontade ferrenha de tentar impedir aquilo que seu orgulho e medo não aceitam! E justamente por isso acabam desencadeando justamente o que pretendiam evitar! Diz-me Faluug, já não cantaste canções de escárnio? E já não expusestes vergonhas e depravações alheias?

- Sim, já, mas...

- E achas que isso também não pode ter levado a conseqüências tão funestas, senão piores do que os meus atos?

-É...é possível...

- Então quem és tu, ó ser humano, para me julgar? Se contar tuas histórias, se cantas tuas músicas, pelo seu prazer, sem se importar se elas trazem alguma conseqüência funesta? A minha história tu já tens, e agora, se me dá licença, devo partir para Masmin.

- Não! Isto não fará antes de mim! – gritou o bardo. – Pois sei que lá também espalhará a ruína! Mas eu chegarei antes de ti, e alertarei todos sobre o profeta negro. – e assim, Faluug Haags, pôs se a correr pela escuridão da floresta Klyvat, com o livro onde registrava suas histórias apertado contra o peito.

Quanto ao profeta, este permaneceu em pé, observando a fuga do colecionador de histórias, com um prazeroso sorriso nos lábios. Em seguida, ele fez um gesto e seu rosto adquiriu um aspecto aquilino e muito mais belo, seus cabelos passaram do negro para o vermelho sangue e se estenderam até as costas. A aparência com a qual Faluug Haags o conhecera ele não mais usaria, pois era o rosto de outro profeta, que por ocasião encontrava-se residindo no reino de Masmin.

Vai bardo, corre e impede o profeta sombrio que espalha seu veneno em Masmin, pois tenho certeza que haverei de me deleitar com o caos que advirá do teu feito.


Livros publicados pelo autor:

A Dama Escarlate - A Emissária da Morte

http://www.clubedeautores.com.br/book/21808--A_Dama_Escarlate

A Dama Escarlate - A Peste

http://www.clubedeautores.com.br/book/41755--A_Dama_Escarlate